quinta-feira, 23 de julho de 2009

Mais literatura - Interpretando Fernando Pessoa

O texto a seguir é uma interpretação do poema "Pobre velha música!", do poeta Fernando Pessoa, mesclada com uma boa pitada de ficção.

__________________________André Filgueira____

___________________________________________________________________

Lembranças

Minha fonte já estava há mais de 1h atrasada, e meus dedos tamborilavam na mesa, ao ritmo da música. O sol já estava baixo, oposto aos meus olhos, e a lona sobre a porta de entrada do pequeno restaurante não conseguia mais me proteger. Ainda assim, minhas pupilas inquietas examinavam os transeuntes sem trégua.

O som arranhado saindo do gramofone berliner, sobre uma mesa dentro do restaurante, era uma valsa. Eu gostava, mas não conseguia identificar o compositor, sempre fui péssimo nisso. A valsa chegou ao fim, dando lugar ao ritmo africano. Aquele som seco de um tambor – sem ritmo, para mim – começou a me irritar ainda mais.

Eu me preparava para levantar-me quando ele apareceu. O chapéu de feltro, combinado aos óculos redondos de armação fina, conferiam um aspecto misterioso. O homem de terno, gravata e colete em tons escuros ficou parado exatamente em frente à minha mesa, bloqueando o sol. Consegui perceber seu olhar vago perdido em algum ponto dentro do restaurante.

Ele parecia perdido e, logo notei, era a música. Por pouco mais de um minuto, ele ficou ali, como que hipnotizado, os olhos marejados. Então, a música acabou, ele pareceu despertar do transe.

Nessa hora, o homem me viu, e quando sua boca se abriu, no que presumi ser para desculpar-se, eu fui mais rápido:

- Bela música! Qual o nome?

Por um instante, ele pareceu tentado a ir embora.

- Desculpe, não me recordo.

- Olha, senti sua nostalgia – argumentei.

Ele pareceu encabulado, mas respondeu:

- Realmente, não me recordo. Mas ela me faz lembrar de minha infância.

- Querendo voltar no tempo?

- É... chega a arder no peito.

Não consegui segurar o sorriso, ante um homem de prováveis 45 anos, todo encabulado.

- Então foi um tempo feliz, não é?

- Não sei. Só sei que agora eu fui.

Com os olhos a ponto de inundarem-se em lágrimas, ele sorriu e despediu-se.

- Boa noite.

- Boa noite, senhor...

- Fernando Pessoa.

0 comentários: